Uma Pequena Perspectiva Pretérita
Memórias... Lembranças... Recordações... Salva-guardas de coisas passadas (e enfatize-se, passadas).
Guardadas no sótão, junto com algumas flores ressecadas ou numa caixa de papelão junto da foto em que se queimou pela primeira vez na casa da avó (deixando uma marca no pulso esquerdo).
Memórias devem ser retratos (de coisas boas) largados ou pendurados pela casa e inteiriços, ao contrário das medidas chuvosas de qualquer um em geral: dobrá-las e guardá-las nos bolsos dos casacos de inverno (aqueles que nunca usam).
Essa pequena perspectiva é tão universal e tão pessoal que é impossível escrevê-la em apenas uma pessoa (seja a primeira, seja a terceira do plural)... E desesperadora numa conciliação pra lá de torta e desajeitada. [Uma sublimação: não sou bom em fazer pazes, porque não aceito passos atrás - o que me leva a desconsiderar a tentativa alheia de fazê-lo).
Esse olhar pretérito é complexo, por isso eu não recomendo a mentes conservadoras lê-lo (alerto-os que pode causar-lhes irritação paradoxal pelo meu desregulado e genioso modo de pensar).
É também um recado de frases soltas e sem congruência, sem coerência ou coesão - ainda assim, cheio de significado. Portanto, aos que largaram de preconcepções ao ponto de avançar até aqui, começo a minha confissão...
Escolha uma carta. É, qualquer carta. O que acha dela? É sua ou para você? O que traz a memória? Pare. Você não ouviu, pare agora. Muito bem. Uma memória bailando entre os olhos? Uma lágrima talvez? Se for de alegria pode deixar cair e sorria, se não... Engula. É amarga, mas deve descer igual uma dose forte de cachaça. Acabou? Agora você está no clima certo.
Eu sou um homem distinto de quaisquer outros. Parece arrogância? Talvez se aproxime mais do orgulho, afinal tenho uma estima muito grande por mim mesmo. Com motivos - é claro - mas também com reservas. Conheço meus defeitos. De alguns eu não me permito refutar, de outros estou tentando me livrar, mas conheço-os todos. Por isso mesmo os exibo tanto quanto minhas virtudes. Quero que gostem de mim por quem eu sou, com o doce e o amargo. Não uso máscaras, elas me sufocam. Quem quer que se aproxime, que aprecie meus erros tanto quanto meus acertos. Pois é... Isso serve como prólogo. Agora ao mérito...
Que entre minha pequena perspectiva pretérita em resumo: não esquecer. não guardar mágoas. não voltar atrás. É isso. Sem letras maiúsculas pra não guardar nomes próprios. Porque a única propriedade que me vale sou eu mesmo. O resto é lucro (já diziam as línguas mais sábias).
Que entre então minha pequena perspectiva pretérita em minúncias:
não esquecer - frase, ou música, ou poema, ou foto, ou abraço, ou briga, ou erro, ou acerto. não esquecer nada, para repetir o bom, evitar o ruim e guardar tudo nas caixas certas. exibindo tudo numa amostragem geral de quem você é, pois poderão ver quem você pelo que você faz (ou fez) aos outros (não pelo que diz ser).
não guardar mágoas - se há uma coisa a ser anotada à ferro quente na pele é a ordem de não guardar remorsos. não sujar memórias. não amargurar lembranças que um dia foram boas. tire-lhes o sal e o açúcar, mas não adicione cicuta na receita. dizia a avó: não cuspa no prato em que comeu... etecetera e etceteras... de início pode ser difícil, eu sei (e como sei), mas depois o peso sairá de seus ombros como se nunca houvesse estado lá. a vantagem é que no fim da vida você terá muito do que se orgulhar e pouco do que se arrepender. [MEMÓRIAS SÃO O SALÁRIO DA VIDA]
não voltar atrás - essa é talvez a parte mais importante da minha pequena perspectiva pretérita, pois impede que você desfaça os passos anteriores. abre portas que permaneceriam fechadas. fecha as caixas antes da mudança. enverniza os móveis construídos acompanhadamente. pinta a casa com tons claros. deixa a brisa entrar... afasta decepções repetitivas. quebra ciclos viciosos. adestra o destino.
Aí está: Adestrei o destino e essa é uma das coisas que me tornaram impassível na minha calma arroxeada e pulsante. Impermeabilizou minha mente contra tristeza e rancor, raiva e remorso. Infundiu-me com a certeza de que tudo aquilo que me acontece de ruim, acontecerá uma única vez. Todo erro que eu cometer, cometerei apenas uma vez. Todo aquele que me ferir, não terá nova chance de fazê-lo. É um caminho solitário.. Poucos estão capacitados a segui-lo, mas quem quer que adquira essa pequena perspectiva pretérita, terá uma imensurável e indescritível inspiração universal. Um novo meio de ver o tempo, a vida, o universo e tudo o mais. Algo tão improvável que alcança um nível D. Adams de existência. Essa perspectiva universal não tem preço.
Mas o custo também é muito alto.